31 de julho de 2012

Cartografias da cidade-látex


Por alguma razão, a postagem original desapareceu do blog. Republico-a, então:

Excerto de "A Cidade Sebastiana. Era da Borracha, memória e melancolia numa capital da periferia da modernidade", meu livro, que pode ser encontrado na Fox (Dr. Moraes entre Conselheiro e Mundurucus), livraria da UFPA, livraria Humanitas, Ná Figueiredo, banca do Alvino. E, fora de Belém (ou pela internet), nas Livrarias Cultura e Leonardo da Vinci.


Entre 1880 e 1912, período áureo da economia seringueira na Amazônia, a cidade de Belém foi o ponto central de um discurso de poder - a modernidade - que lhe reformulou o plano urbano e os costumes. O monopólio mundial do látex, mantido pela Amazônia nesse período, permitiu investimentos, públicos e privados, que tornaram Belém uma cidade única, de cores tradicionais acrescidas dos signos de sofisticação, higienização e agilização da vida citadina do mundo europeu de então. Seguindo esses princípios, essa Belém ergueu-se altiva, uma capital da modernidade, ainda que na periferia extrativista e monocultora do capitalismo oitocentista.
Em 1905 o município de Belém possuía uma área de 40.156.568 m2, com 24.103.972 m2 de área edificada, o que correspondia a 53 ruas e avenidas, 52 travessas, um número incalculável de "corredores" e pequenos caminhos, 22 largos, 790 construções assobradadas, inclusive os "palacetes", 9.152 prédios, 2.600 pequenas casas e onze grandes trapiches nos portos.


Essa era a cidade "lemista", administrada pelo intendente Antônio José de Lemos, principal líder político paraense entre 1897 e 1912 e que realizou tantas reformulações na cidade que, não raro, associa-se à sua figura a própria "Era da Borracha", como se tivesse sido o principal responsável pela riqueza amazônica da época. A Belém-látex pré-lemista, tanto a capital do Grão-Pará imperial quanto a cidade dos primeiros tempos republicanos, já apresentava uma série de avanços modernos. No entanto, para dizer o que "foi", modernamente, a Belém-látex, seria melhor ir a 1912, ano da débacle - a falência da economia seringueira -, para que se tenha a somatória das cartografias das suas modernidades, seja a parte de Belém que foi de inspiração "lemista", seja a parte dela que surgiu de outras inspirações, tanto públicas quanto particulares.
Em 1912 a cidade estava dividida em seis distritos, cada um coordenado por uma prefeitura policial. O primeiro distrito englobava o núcleo inicial da cidade, o bairro da Cidade Velha em primeiro plano. Principalmente residencial, ali também estavam instalados os principais prédios do poder público, os palácios governamentais, as secretarias de Estado, o presídio de São José, a sede do bispado, o Arsenal de Marinha, os corpos policiais e os bombeiros.
O eixo estrutural era a avenida 16 de Novembro, que unia o Largo dos Palácios, sede administrativa, ao Largo de São José - passando, na metade do caminho, pelo Largo do Redondo. Mas o eixo principal, local de residência das famílias tradicionais, era o circuito formado pelas ruas Dr. Assis e Dr. Malcher, ambas paralelas, que uniam o Largo da Sé ao Arsenal de Marinha. Nesse eixo, travessas importantes constituíam a velha Belém, familiar e devota. Era ponto importante a Rua Siqueira Mendes, a mais antiga da cidade, que ia da Sé ao Largo do Carmo, local de importantes referências urbanas como o Palácio Velho, antiga sede do governo, o colégio e a igreja do Carmo e o Porto do Sal, ancoradouro de embarcações fluviais que, ali mesmo, comercializavam seus produtos. Outro local de convergência do distrito era o Largo de São Joãozinho, por trás do Palácio dos Governadores, sede do governo, construído durante a administração pombalina, na metade do século XVIII. Para ali convergiam as ruas de Santarém e de Cametá, artérias residenciais. A avenida 16 de Novembro e as ruas Dr. Assis e Dr. Malcher, e também os Largos da Sé e dos Palácios eram atendidos pelos serviços de bonde elétrico. No mesmo distrito, em direção ao Rio Guamá, havia ainda o bairro do Jurunas, habitado por classes populares mas não inteiramente aberto aos imigrantes nordestinos que chegavam.


O segundo distrito constituía o bairro da Campina, ou do Commércio, cujas construções antigas iam, aos poucos, sendo substituídas por novos e imponentes prédios modernos. É interessante observar como o ciclo do látex modificou as estruturas sociais desse antigo bairro de Belém, firmando-o como bairro comercial. A grande área que ficava entre os alagados do Piry - uma imensa área lamacenta cujo aterramento, a partir do século XVIII, determinou os rumos da evolução urbana da cidade - e a faixa litorânea, tradicionalmente "a Campina", logo se dividiu em dois setores razoavelmente demarcados: o Commércio, ou seja, a parte litorânea e mais antiga do bairro, e a Campina, a zona de aterramentos que adentravam no velho Piry e faziam-no sumir. Porfim, o segundo distrito compreendia, ainda, o bairro do Reduto, que abrigou, a partir da década de 1910, fábricas e vilas operárias.
Três bairros, portanto, compunham o segundo distrito. Os pontos de convergência urbana desses bairros eram muitos, mas seus eixos eram razoavelmente contínuos. Assim, a Rua João Alfredo, ainda no bairro do Commércio, se transformava em Rua de Santo Antônio, e, a seu ponto final, era paralela à principal artéria do bairro do Reduto, a Rua 28 de Setembro. A Rua Paes de Carvalho atravessava os bairros da Campina e do Reduto como uma artéria de ligação. Nesse distrito os pontos de convergência urbana eram, no Commércio, o Boulevard da República, em frente à baía do Guajará, o complexo de mercados do Ver-o-Peso, o complexo de trapiches do porto e o Largo das Mercês. Na Campina, o Largo do Rosário e, no Reduto, a sua “doca” que, a partir de 1905, com a construção do cais inglês, foi sendo descaracterizado e perdendo suas funções tradicionais, como ponto de desembarque do comércio fluvial.
O terceiro distrito atendia, de início, unicamente, à parte de Belém que estava destinada a ocupar a função de novo centro da cidade: o Largo da Pólvora. A partir de 1905, os limites da jurisdição desse terceiro distrito foram elevados até a Praça Baptista Campos e seus arredores, que antes pertenceram ao distrito da Cidade Velha. O Largo da Pólvora constituía ponto mítico de Belém. Ali concentravam-se as maiores esperanças no futuro da cidade. Estava instalado em condições geográficas favoráveis, num ponto sólido de terra e na confluência entre cinco dos seis distritos urbanos. Além disso, durante a primeira fase do ciclo do látex, entre 1860 e 1885, aquele ponto de Belém foi convertido em lugar de divertimentos: cafés, bares, bilhares, prostíbulos, circos e teatros de rendez-vous (como o famoso Chalet), o que dava ao lugar certo ar de mistério e de proibição. Com o tempo, com a urbanização das proximidades e com a sofisticação crescente daquelas "diversões" - instalação de "cinematógrafos", construção do Theatro da Paz e do Grande Hotel, inauguração de cafés elegantes, do Palace Theatre e até de uma montanha russa, a Pólvora tornou-se o ponto mais elegante da cidade, com suas calçadas largas e com a transformação das avenidas 15 de Agosto e Ferreira Penna em boulevards arborizados. As imediações também se modificavam nesse sentido. Baptista Campos, a avenida Serzedello Corrêa e a "Soledade" tornaram-se, entre 1895 e 1910, local de residências importantes, place dos palacetes, o mesmo acontecendo com as duas grandes avenidas que partiam da Pólvora: São Jerônymo e Nazareth, que se prolongavam entrando na área do quarto distrito.


Essa quarta área urbana possuía um grande eixo estrutural: a avenida Nazareth, que partia do Largo da Pólvora em direção ao Largo de Nazareth e que, daí em diante, seguia com o nome de avenida Independência, mais larga e retilínea, até o Largo de São Braz. As Avs. São Jerônymo e São Braz, paralelas à Nazareth, davam o corpo principal do imponente bairro de Nazareth, antiga zona rural da cidade, antes ocupadas por "rocinhas", quintas e granjas típicas da Belém oitocentista, e que agora davam lugar a palacetes e sobrados das elites seringueiras mais prósperas. Do Largo de Nazareth partia a avenida Generalíssimo Deodoro, que seguia até o Largo de Santa Luzia, onde estavam instalados os novos prédios da Santa Casa de Misericórdia. Essa avenida, por sua vez, constitua o eixo central do recente bairro do Umarizal, cujas ruas foram abertas sobre um cerrado bosque de umaris, de onde lhe vem o nome. Além do Umarizal, passando o Largo de Santa Luzia, a Tv. Dom Pedro, a avenida São João e a Rua da Municipalidade compunham as artérias principais do bairro também recente da Sacramenta que, por sua vez, comunicava-se com o Reduto.
Mas o quarto distrito ia além de Nazareth: alcançava o bairro de São Braz, em torno do largo de mesmo nome, onde, em 1909, foi inaugurado um grande mercado municipal. Havia ali a estação principal da estrada de ferro de Bragança e um velódromo. A partir de São Braz, em direção ao sul, ou seja, ao Rio Guamá, havia uma tendência de expansão urbana cujo eixo foi a avenida José Bonifácio, que levava ao cemitério de Santa Isabel. A sucessão de travessas paralelas à José Bonifácio logo constituíram o bairro do Guamá. As áreas próximas ao Largo de São Braz, mas pouco urbanizadas, foram utilizadas para instalar os largos fluxos de imigrantes nordestinos, expulsos pelas secas e atraídos pelo fascínio da borracha. Para muitos, essas áreas de São Braz constituíam os pontos mais perigosos da cidade, e parecia haver um certo descontrole, naquela área, dos projetos urbanos lemistas. São Braz fora programado ser a porta de entrada ao bairro de Queluz, que Lemos pretendia tornar a zona mais nobre de Belém e futura sede do poder público. Ocupado pelos imigrantes nordestinos, que ali desembarcavam e se estabeleciam, talvez por isso, não tenha sido urbanizado de acordo com os projetos da intendência.


Também a partir de São Braz seguia a magistral avenida Tito Franco, projeto fundamental da urbanística lemista, que pretendia definir, como de fato definiu, os rumos da expansão futura da cidade. Essa avenida levava ao "marco da légua", marco da primeira légua patrimonial urbana, ponto limite de Belém. Nessa grande avenida vazia, de quase nove quilômetros de extensão, cercada por matas, o poder público construiu equipamentos de grande porte: o Instituto Lauro Sodré, escola técnica com aparato europeu, o asilo de mendicidade, o asilo dos alienados e o Bosque Municipal, primeiro dos dezesseis grandes bosques que seriam construídos na cidade, não fosse o débacle da economia seringueira. Construções particulares não menos imponentes foram sendo construídas, aos poucos, ao longo e nas proximidades da Tito Franco, e também novas quintas e granjas foram ali instaladas. A estrutura urbana projetada, por sinal, previa casas com quintais imensos, de modo a resgatar o antigo ar rural de Nazareth.
Os distritos urbanos de número 5 e 6 constituíam projeções imaginárias da expansão do tecido urbano.Pode-se vê-los no mapa de José Sydrim, desenhista municipal, elaborado em 1905, onde constituem uma malha simétrica perfeita, composta por dezenas de quarteirões retangulares cortada por largas avenidas e boulevares e preenchida por bosques e praças. Esses dois distritos imaginários indicam o projeto urbanístico de Antônio Lemos, assinalando os rumos de crescimento urbano pretendidos pelo poder público. Eles encerram-se rigorosamente na fronteira da primeira légua patrimonial urbana, tracejada sobre a forma de um anel viário a ser implementado.
Mas, naturalmente que nem tudo era imaginação no desenho desses distritos: os subúrbios da Pedreira, da Sacramenta, do Telégrafo e do Marco, bairros atuais de Belém, conformavam, já, manchas urbanas, algumas importantes, como no caso do primeiro desses quatro subúrbios. Além disso, cabe destacar a avenida Tio Franco de Almeida, eixo central do projeto lemista, que separava os dois distritos e que já então constituía a entrada e saída terrestre de Belém. Cabe ainda notar-se que esses dois distritos imaginários cobriam a larga extensão de terras alagadas da cidade, de resto representados no mapa de 1905 por meio de linhas pontilhadas – curiosamente subpostas, não obstante serem as linhas reais da planta, pelo tracejado forte dos quarteirões a construir.

As imagens foram copiadas do Álbum O Pará, impresso pelo Governo do Estado em 1905. 

4 comentários:

  1. É impressionante ver como era Belém nesse tempo e comprar com o estado atual. É claro que não era só o dinheiro da borracha que fazia a cidade bonita; havia uma mentalidade política mais favorável, mais competência por parte dos gestores e um compromisso em embelezar e promover a saúde pública! Tudo o que não temos hoje. A Belém de hoje é o contrário disso tudo que vc mostrou.

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    1. Concordo, a Belém atual, tendo Duciomar Costa como prefeito, é, efetivamente, o oposto da boa gestão vista na Era da Borracha. Sua leitura está certa: para além do dinheiro havia inteligência e boa vontade política.

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  2. As fotos têm uma qualidade impressionante, para um álbum impresso em 1905. É isso mesmo - todas elas são desse álbum? Onde poderia encontrar esse álbum?

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    1. Todas são do álbum, que, aliás, todo ele tem uma qualidade gráfica impressionante. Mas havia fotos de excelente qualidade em 1905. O álbum foi impresso pelo governo de Augusto Montenegro. Os exemplares que sobraram estão nas bibliotecas e acervos de obras raras.

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